Homenagem a Braga – A música Filarmónica ao serviço da cidade
Paulo Ferreira
(Doutorando em Estudos Culturais)
Tiago Brás
(Mestre em Ensino de Educação Musical)
No intuito de fundamentar a pretensão de uma homenagem à Cidade de Braga, com particular incidência ao nível da música filarmónica, procedeu-se a uma investigação e levantamento de dados históricos que seguidamente se apresentam. Pretende-se, de forma sucinta, colocar em evidência a existência substantiva da atividade filarmónica na Cidade de Braga, nos séculos XIX e XX, enquanto património suscetível de se perder de forma irremediável.
Constata-se uma relativa abundância de espólios musicais de várias instituições bracarenses e, após uma breve investigação dos seus conteúdos, verifica-se a existência de obras dedicadas e inspiradas pela cidade de Braga, lugares e instituições. Por um lado, são vários os hinos dedicados a diferentes instituições, desde as escolares às desportivas.
Por outro, reconhecem-se lugares como o Santuário do Bom Jesus, o Santuário do Sameiro ou a Sé de Braga que evocam a atmosfera da cidade nos seus vários aspetos: visual, auditivo, cultural e espiritual.
A música parece emergir assim como uma forma de homenagear a Cidade, monumentalizando o seu património, a sua comunidade, as suas práticas e tradições. Por vezes, a própria atividade filarmónica é materializada na paisagem urbana, com os coretos a constituir um bom exemplo disso. Três exemplares de coretos são reconhecíveis, ainda hoje, em Braga: o coreto da Avenida Central, com projeto de 1866 e obra contratada em 1868 (Pires de Oliveira, 1995, p. 19 a 35); o coreto do Parque da Ponte, inaugurado em 1912 com projeto de Ernesto Korrodi (Echos do Minho, 1912); e o coreto do Bom Jesus, construído nos finais da década de 1920 (Confraria do Bom Jesus do Monte, 2022). Estes coretos são testemunhas físicas da intensa atividade filarmónica da cidade durante a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX.
Nesta época e no que diz respeito apenas ao termo urbano de Braga, destaca-se a existência de seis bandas filarmónicas: a Banda do Regimento de Infantaria 8, a Banda de Música do Círculo Católico de Braga (mais tarde conhecida como Banda Comercial), a Banda dos Bombeiros Voluntários de Braga, a Philarmonica Bracarense, a Banda de Música da Oficina de S. José e a Banda de Música do Colégio dos Órfãos de S. Caetano.
Para além dessas, as bandas de música também proliferaram no termo rural durante o século XIX, nomeadamente: a Banda da Graça, Banda de Música de Ruilhe, Banda de Música de Arentim, Banda de Música da Fábrica de Ruães, Banda de Celeirós e a Banda Musical de Cabreiros — a única que resistiu até aos nossos dias em todo o concelho de Braga. Alguns dos maestros das citadas bandas destacar-se-iam no panorama musical bracarense, e até nacional, como compositores de excelente gosto e apurado sentido estético. Desses destacam-se Joaquim José de Paiva, Guilherme da Piedade, João Carlos de Sousa Morais e Joaquim António Morais.
Como em tantos outros sítios do país, também em Braga existiu uma banda afeta ao regimento de infantaria que se sediava nesta cidade, o regimento de infantaria 8 que se fazia albergar no Convento do Pópulo. Tal como a generalidade das bandas militares portuguesas viria a extinguir-se após a emissão do Decreto-lei 28:401 de 31 de dezembro de 1937 por evocadas razões económicas que em nada tiveram em atenção a utilidade destas bandas na educação musical das populações nem na animação e divulgação da cultura musical (Correia, 2006, pp. 15-16). Desta banda foram regentes dois compositores com obras dedicadas à cidade de Braga: Joaquim António de Morais, entre 1912 e 1920, e Guilherme da Piedade, entre 1923 e 1928 (Carneiro, 1960).
De Joaquim António de Morais (1870-1937) destaca-se a obra Braga em Festa, cujo paradeiro da partitura era desconhecido e, entretanto, encontrada durante esta investigação. A obra é reconhecida como de grande qualidade e originalidade como nos afirmou o testemunho de um antigo músico bracarense, que nos foi possível recolher, e que ainda se lembra de ouvir esta obra a ser executada nas festas de São João. De Joaquim António de Morais conhecem-se mais duas rapsódias dedicadas a Braga, As festas de S. João e Aos meus amigos bracarenses, e ainda a mazurca A Bracarense (Carneiro, 1960, p. 241).
De Guilherme Joaquim Boto da Piedade (1884-1952), a obra S. João de Braga – Paráfrase de Canção, ob. 103,inspirada nas festas de S. João, a “Braga” – Suite ob. 87 constituída por quatro andamentos: I. Os Sinos; II. Passeio ao Bom Jesus do Monte; III. Serenata no Lago; IV. Regresso à Cidade; obra que evoca a paisagem sonora, nomeadamente no primeiro andamento, mas também um espaço tão significativo e icónico como o Santuário do Bom Jesus do Monte, que relembra uma prática comum à época, a visita a esse santuário aos domingos e feriados. Ainda de Guilherme da Piedade importa referir a autoria do Hino do Sporting Club de Braga que, segundo Álvaro Carneiro, foi executado pela primeira vez a 21 de junho de 1926 pela banda do Colégio dos Órfãos de São Caetano no Theatro Circo, num espetáculo de homenagem ao clube bracarense. Barros Pereira acrescenta que o hino, já quase esquecido, voltaria a ser ouvido em 1936 graças à colaboração de um oficial da Guarda Nacional Republicana que o viria a ensaiar “em tempo record”, para ser apresentado no Estádio 1.º de Maio durante um festival desportivo (Pereira, 2006, pp. 36-37).
Não associado ao regimento, o militar João Carlos de Sousa Morais (1863-1919), que passou parte da sua reforma na cidade de Braga, dedica-lhe certas composições. Com referência a esta cidade escreve Homenagem a Braga que classifica como Sinfonia talvez mesmo pelos quatro andamentos de que se constitui. A fama deste compositor era tal que anos após a sua morte se mantinha como referência da música filarmónica, um pouco por todo o país e, particularmente, na cidade de Braga. De tal forma, Eugénio Amorim, assinala que, a 31 de junho de 1927, a banda do Regimento de Infantaria 8 realizou um concerto em Braga honrando a memória deste compositor com um repertório exclusivamente da sua autoria e onde a Homenagem a Braga foi a obra que mais brilhou (Amorim, 1941, p. 105). A obra pauta-se pelo seu caráter solene de enorme complexidade e até mesmo virtuosa no seu último andamento, com grande contraste, mas sempre com pequenos motivos comuns entre eles. Um primeiro andamento misterioso e lírico, um segundo andamento jocoso que parece evocar uma atmosfera festiva da cidade. O terceiro andamento surge com um incomum solo para dois flautins acompanhado de um solo para bombardino, o que não admira atendendo estes serem os instrumentos tocados pelo compositor. Tudo termina com o quarto andamento enérgico que reexpõe os temas seguido de uma Coda onde se exige a todos os naipes virtuosismo, concentração e rigor.
Depois de se mencionar alguns espaços da cidade de Braga evocados pela música, é impossível completar este roteiro sem falar do Santuário do Sameiro. Raúl Campos (1883-1947), violinista natural de Lisboa, que se notabilizou enquanto 1.º Violino do Teatro São Carlos e regente da Orquestra Típica Portuguesa, mas também como diretor do Sindicato Nacional dos Músicos e cofundador da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais (Biblioteca Nacional de Portugal, sem data), escreveu a Suite Portuguesa – Nossa Senhora do Sameiro, constituída por cinco andamentos: I. P’rá Romaria; II. A Trova do Cruzeiro; III. Bailarito Minhoto; IV. Salvé Mater Dolorosa; V.
Dança dos Conversados. Atendendo ao facto que o título de Senhora do Sameiro,atribuído à Virgem Maria, ser uma denominação original da Igreja Bracarense, deduz-se então que esta Suite esteja relacionada com este título de Nossa Senhora tão querido e venerado pelos bracarenses. Também o título do terceiro andamento — Bailarito Minhoto — nos impele a tomar como certa esta posição. Contudo, não se pode afirmar inequivocamente de que esta obra tenha sido originalmente escrita para banda filarmónica, uma vez que encontramos uma partitura de um dos andamentos para bandolim/violino e piano no catálogo da Biblioteca Nacional Portuguesa, bem como, uma versão para piano solo no catálogo do Portal de Recursos para a Educação Artística na Madeira — nesta versão identificado não como Suite Portuguesa, mas como Auto Português.
Já antes aqui se falou que os hinos também têm uma importância relevante na música dedicada à cidade de Braga. Da mesma forma, dá-se o curioso fenómeno de algumas obras se tornarem hinos de certos movimentos, quase como que apropriados por certas comunidades como seus símbolos. É o caso de uma série de marchas mais recentes, de caráter popular, compostas pelo reconhecido maestro Resende Dias (1916-1992), figura assídua da rádio e da televisão portuguesa. Dessas marchas, destacam-se as gravadas num disco da editora Rapsódia, com direção do próprio compositor e cantora solista Maria de Lurdes intituladas: Ao Passo da Marcha; S. João da Sé de Braga; Marcha da Sé de Braga e Santo António Veio a Braga, cuja partitura para banda filarmónica foi encontrada. Todavia, os hinos na sua aceção original são abundantes nas várias instituições bracarenses, particularmente em três, nas quais, no passado, existiram bandas de música associadas — Bombeiros Voluntários de Braga, Oficina de S. José, Colégio dos Órfãos de S. Caetano.
O hino dos Bombeiros Voluntários de Braga, cuja autoria se desconhece, e cujas partituras estão preservadas no espólio no Colégio dos Órfãos de S. Caetano terá sido certamente executado pela Banda dos Bombeiros, da qual há registos de atividade a partir de 1884, resultado da redenominação da Banda dos Artistas, pelo menos até 1910, sob a designação de Banda dos Bombeiros da Câmara Municipal de Braga (Peixoto, 1998, p. 254). É de grande dificuldade obter mais informações sobre este grupo, dado em conversa com elementos da atual corporação de bombeiros, foi dado a conhecer um trágico acidente com o seu arquivo de informação aquando da mudança para o atual quartel, situado no Largo Paulo Osório. É também de autoria anónima o primeiro Hino da Oficina de S. José, anonimato assinalado na própria partitura datada de Março de 1899. O título da partitura deste hino,que se julga ser autógrafa, constitui, por si só, um elemento relevante para perceber a sua contextualização, senão atente-se: Hymno da Officina de S. José de Braga oferecido para comemorar o anniversario da sua fundação pelo anonymo Bracharense A.A. – Março de 1899 (Para ser executado na festa do Padroeiro a 19 de Março). Um segundo hino foi composto posteriormente pelo capitão Joaquim António de Morais, que também foi regente desta banda em 1921 durante a festa anual dessa casa (Diário do Minho, 1921) que em 1891, dois anos após a fundação da instituição, tinha já criado a sua banda (Soares, 2019).
De igual modo, o Colégio dos Órfãos de S. Caetano, instituição do mesmo cariz da anterior, mas mais antiga, tendo sido fundada em 1791, teve a sua banda filarmónica com atividade entre, presumivelmente, 1893 até 1971. O hino desta instituição foi composto também por Joaquim António de Morais, pelo menos é o que evidencia uma
das partituras encontradas deste hino. Este compositor, já várias vezes referido, foi regente da banda de S. Caetano entre 1913 e 1917 (Carneiro, 1960, p. 240). Conhece-se também desta instituição um hino composto para a celebração dos 150 anos da fundação, com música de Teixeira Basto.
Finalmente, é impossível referir hinos sem se falar do hino dedicado à cidade. As controvérsias à volta deste hino são várias. Comecemos pelo seu autor. Acredita-se, com base no testemunho de Álvaro Carneiro, que terá sido Joaquim José de Paiva (1832-1901) o autor deste hino que terá sido “oferecido à cidade em 1856”, tendo sido ainda classificado como sendo “muito popular e apreciado” (Carneiro, 1960, p. 272). Contudo, não se encontra mais qualquer referência quanto a um possível autor nem mesmo alguma prova da sua escrita, o que nos leva a procurar respostas na sua letra. Em 1999, pelas mãos de João Duque e Amadeu Torres (Castro Gil de pseudónimo) nasce uma reestruturação do hino adicionando, até então pensada ser inexistente, uma letra. Seria seguro pensar que após 143 anos sem se ouvir ou ter referências a uma letra do hino da cidade bastariam para afirmar a sua inexistência. No entanto, surge pelas mãos de João Pires Brás (1944- ) uma partitura antiga, proveniente do espólio do seu tio paterno, o reconhecido Padre Alberto Brás (1900-1976), uma intrigante partitura para piano com o título Hymno A’ Cidade de Braga Augusta (J. Duque & Torres, 2000; Vaz, 2000). Sem ser possível datar a mesma, mas com uma clara noção da sua antiguidade, após uma breve análise da mesma repara-se nas indicações de “Voz” e “Côro”, evidenciando assim a existência de uma possível letra. Com a possibilidade de haver uma letra originalmente escrita para o Hino de Braga, quem sabe aquando da sua estreia em 1856, surge a possíveldescoberta da mesma, com Rui Ferreira (Ferreira, 2013, pp. 122–126). A letra encontrada, da autoria de João Joaquim d’Almeida Braga, demonstra um caráter associado a uma letra de um hino, contudo, quando tentamos encaixar a mesma na música original de piano não temos grande sucesso, não conseguindo fazer uma execução digna de um hino. Fica assim a dúvida de se de facto será esta a letra original, ou até se haveria alguma. Em conclusão, a investigação realizada evidencia a riqueza e importância da atividade filarmónica na cidade de Braga ao longo dos séculos XIX e XX. A existência de espólios musicais de várias instituições bracarenses, obras dedicadas à cidade, lugares e instituições, bem como a presença de coretos na paisagem urbana, são testemunhas da intensa atividade na região. No entanto, é importante reconhecer a vulnerabilidade desse património e a necessidade de preservá-lo para as gerações futuras. Uma homenagem à cidade de Braga, com particular incidência ao nível da música filarmónica, é justa e merecida, pois celebra e valoriza essa rica tradição musical que faz parte da identidade cultural bracarense.
Referências Bibliográficas
Amorim, E. (1941). Dicionário Biográfico de Músicos do Norte de Portugal. Edições Maranus.
Biblioteca Nacional de Portugal. (sem data). Doação do Espólio de Raul de Campos à BNP. Obtido 5 de Março de 2023, de https://www.bnportugal.gov.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=630%3Adoacao-do-espolio-de-raul-de-campos-a-bnp&catid=49%3Aaquisicoes&Itemid=669&lang=pt
Carneiro, Á. (1960). A Música em Braga. Oficinas de S. José.
Confraria do Bom Jesus do Monte. (2022). Bom Jesus do Monte. https://bomjesus.pt/bom-jesus/coretos/
Correia, L. M. T. (2006). Bandas e Músicos Militares em Portugal – Do século XIX ao XXI [Mestrado em Artes Musicais]. Universidade Nova de Lisboa.Diário do Minho. (1921, Abril 19). Cronica de Braga. Diário do Minho.
Duque, J., & Torres, A. (2000). Hino de Braga. Orfeão de Braga.
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